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A Lenda da Meia-Noite

9781465566997
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Library of Alexandria
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JULIETA CONTO PHANTASTICO Eram onze horas da noite, e estava-se tomando chá em casa do meu amigo Frederico B * * *, em Bemfica. Havia uma roda d'intimos; a conversa estava animada e o meu amigo, a quem a alegria e o entrain dos convidados deixavam mais liberdade no cumprimento dos seus deveres de dono da casa, aproveitava-se d'isso para contemplar extasiado sua linda mulher, com quem casára havia pouco tempo, e que do seu lado lhe sorria tambem com a meiguice e ternura da mulher que ama devéras. A conversa animára-se tanto, que se ia transformando em algazarra. Discutia-se acaloradamente a questão da existencia das almas do outro mundo, com grande desprazer d'um jornalista que por força queria conduzir ao bom caminho aquelles discutidores extraviados, propondo que se tratasse da bondade do ministerio, deixando de parte essas tolices, que não serviam para nada. Mas ninguem lhe prestava attenção, o que fez com que elle desesperado fosse lêr pela centesima vez um artigo seu publicado n'um jornal que estava em cima de uma das mezas da sala. Essa producção do seu engenho, que o jornalista relia com tanto enthusiasmo merecia indubitavelmente tão paterna sollicitude, porque elle e o revisor da imprensa tinham sido os seus unicos leitores. Mas o auctor tantas vezes o tinha lido, e tal admiração professava pelo seu proprio talento, que podéra dizer, sem receio de ser taxado de mentiroso?«que o seu artigo tinha feito tal impressão, que lhe constava ter havido uma pessoa que o relia a miudo, e sempre com enthusiasmo crescente, honra de que se podiam gabar poucos artigos politicos da imprensa portugueza.» ?Concluamos, bradava entretanto um medico materialista por dever de profissão, onde collocam os senhores esse agente mysterioso a que dão o nome de espirito, teimando em appellidar assim pomposamente o mechanismo material, que a morte paralysa? Quando esse relojoeiro sombrio, que se chama tempo, quebra com mão despiedosa as rodas complicadas do nosso systema vital, onde se refugia esse ente inutil, esse ser impalpavel a que os senhores espiritualistas querem dar as redeas do governo d'este barro quebradiço, que constitue o homem? E durante a vida quaes são os laços invisiveis, que prendem o escravo ao senhor, o corpo material e fragil á alma etherea e immortal? Tremendo absurdo, utopia talvez respeitavel, sublime tolice pela qual se tem sacrificado innumeras gerações! Ah! mas sobretudo, é doido devéras quem imagina que essa invenção impossivel, resultado das aspirações da humanidade para a existencia eterna, possa vir aos cemiterios animar os restos putrefactos dos reis da creação; quem tal suppõe, não sentiu nunca debaixo do escalpello anatomico o cadaver inerte e despresivel, nem póde avaliar com a vista infallivel da sciencia o nada immenso das vaidades humanas! ?Fóra com o materialista, bradou um rapaz enthusiasta; sabes tu, meu caro doutor, que a primeira vaidade humana cujo nada immenso tu devias avaliar, é a vaidade da sciencia? Que sabes tu, presumpçoso Hippocrates, que tens de recuar vencido perante o primeiro obstaculosinho, que a natureza caprichosa queira oppôr á vista infallivel, como tu dizes, do saber dos homens? E és tu que andas perdido no meio da confusão dos systemas medicos a procurar no labyrintho scientifico o fio conductor que te está sempre a escapar das mãos, és tu que pretendes entrar com passo firme no insondavel labyrintho da eternidade?… Espera, continuou elle vendo entrar um mancebo muito pallido, que foi apertar a mão de Frederico, e comprimentar a dona da casa, queres-te convencer? Pois ahi tens tu um homem vivo, que teve relações directas com um phantasma. ?Roberto, assenta-te ahi, e conta-nos immediatamente a historia do teu espectro, se v. ex.as não se oppõem a isso ainda assim, continuou elle, voltando-se para as senhoras presentes, que tinham escutado a discussão metaphysica, com ligeiros signaes de aborrecimento. Propôr a senhoras uma historia de phantasmas é despertar-lhes a attenção, é fazer-lhes passar nas veias o estremecimento do enthusiasmo. Não sei porque, esses entes frageis, pallidos ou rosados, de olhos negros ou azues, alegres ou melancolicos, esses entes femininos encantadores e timidos adoram tudo o que os faz tremer, e recreiam-se sobre tudo com essas historias terriveis, em que o leitor estupefacto encontra um punhal ao voltar de cada pagina, um ladrão á esquina de cada periodo, um phantasma pelo menos em cada capitulo. Por isso a parte feminina da assembléa acolheu a proposta com enthusiasmo: e a mim e aos outros homens, que estavam presentes, não desagradou a idéa de ouvir uma historia terrivel, em petit comité, no pino da meia noite, tendo de voltar depois para casa por aquelles caminhos desertos dos arredores de Lisboa; a mim sobretudo, que tinha de passar pelas casas arruinadas de Campolide, sorria a idéa de ir com a imaginação povoada de phantasmas, que poderia distribuir á vontade pelos recantos d'essa paisagem tão magestosa, quando a lua envolve os paredões solitarios na branca mortalha da sua luz, em quanto ao longe se desenha sobranceiro entre os campos verdejantes o perfil grandioso do aqueducto sombrio. Roberto, devemos dizel-o para honra sua, não se fez rogado, comprimentou silenciosamente a assembléa, e começou pouco mais ou menos n'estes termo Roberto, devemos dizel-o para honra sua, não se fez rogado, comprimentou silenciosamente a assembléa, e começou pouco mais ou menos n'estes termos: II «Cantava-se em Lisboa pela segunda ou terceira vez o Baile de mascaras. Era uma noite de delirio no theatro de S. Carlos. Franschini, o cantor sublime, fazia tremer de enthusiasmo a platéa inteira, e a voz portentosa de madame Lotti despenhava sobre o publico palpitante torrentes de melodia e de sentimento. O personagem de Amelia, interpretado como então o foi, deixava de ser um typo creado pela imaginação do poeta para se transformar, animado pelo Prometheo do genio, n'um ente real, cujos sentimentos traduzidos em suspiros de harmonia, iam arrancar os soluços dos peitos dos espectadores. Era o poema da paixão, com todas as suas peripecias, mas da paixão verdadeira, da paixão que geme e rasga os seios da alma, da paixão que verte lagrimas, de cujas feridas brota o sangue, e não d'essa paixão ficticia, cuja expressão convencional anima só a mascara, que a artista desafivella apenas desce o panno. Eu, perdido n'um canto da platéa, escutava, como escuto sempre quando vou ao theatro lyrico. N'isso devo confessar-lhes que tenho idéas um pouco originaes. O panno, que sóbe lentamente no principio da opera, descerra para os outros espectadores meia duzia de taboas rodeadas por bastidores de lona, onde uns poucos de artistas vão cantar umas poucas de arias para divertimento do publico. Para mim é como que uma janella encantada que se abre por onde eu me arrojo para os espaços azues do ideal. Os outros analysam com toda a paciencia a instrumentação e o canto, investigam se foram executadas as leis do contraponto, e depois de satisfeitos applaudem compassadamente para não rasgarem as luvas, voltam-se bocejando, e comprimentam a senhora condessa de * * *, ou a senhora baroneza de * * *, cuja chronica escandalosa vão contar immediatamente ao seu visinho da esquerda. Mas eu não. A minha alma, que illumina o fogo do enthusiasmo, não póde ficar na terra, quando sente passar no espaço o sopro da harmonia, da casta filha do céo. Desapparece o theatro, desapparecem os espectadores, desapparece a ficção. Arrastada no manto de fogo do ideal, a minha alma sente, enleva-se, palpita, geme, pranteia, soluça com Macbeth o grito do remorso, suspira com Desdémona a canção da saudade, gorgeia com Helena o hymno da desposada, escuta com Rosina a meiga serenata, sólta com Lucrecia o rugido da envenenadora, e volta depois á terra, deixando-me ficar pallido, extasiado, porque entrevi em sonhos a deslumbrante claridade de um mundo desconhecido. Tinha começado o segundo acto, e eu seguia cheia de um vago terror a scena lugubre do principio. As notas da aria de Amelia soavam-me aos ouvidos como dobres de finados, e quando a Lotti soltou aquelle grito de pavor, que vibrava sonoro e plangente pelo theatro, fazendo estremecer os espectadores, eu levantei-me pallido, convulso, e senti correr-me pela raiz dos cabellos o halito de fogo de uma mysteriosa commoção. O meu visinho olhou para mim espantado; sentei-me, deixei cahir a cabeça entre as mãos, e scismei. ?Ó ideal, dizia eu, quando poderei finalmente sorver a longos tragos o teu nectar precioso na cinzelada taça da phantasia? «Ó virgem dos meus sonhos, ó anjo das azas de ouro, quando poderá a minha alma, abraçando-se comtigo nas regiões celestes, aspirar a plenos pulmões a balsamica aragem da poesia?… O que és tu, ente mysterioso, que assim bafejas o espirito dos grandes poetas, e lhes vaes murmurar, em noites de inspiração, os segredos sublimes que o vulgo profano admira, mas não comprehende? «Oh! quaes serão as visões d'estes homens portentosos, e nas suas noites de febre, de delirio e de insomnia, em que mysticos amores te enlaças tu com elles, ó ideal sublime, ó ideal inspirador? E emtanto nós, os desherdados, bebemos com um riso alvar a agua insipida e lodosa dos prazeres do mundo, e caminhamos n'esta planicie monotona da vida, olhando com terror para o Sinai chammejante, onde campeiam, cercados da divina aureola, os harmoniosos prophetas, os validos da inspiração! «Não posso; falta-me o ar no recinto estreito da vida social; a prosa d'este mundo opprime-me o coração. A minha alma está sequiosa de amor, e este apparece-me sempre escoltado pelas conveniencias, trazendo sobre o rosto formoso a mascara ridicula dos interesses materiaes, ou a mascara odiosa do capricho sensual. Amor! amor! mas um amor como o teu, ó casta e pura Amelia, como o teu, ó Julieta, ó noiva gentil de Romeu e da sepultura, quero um d'esses amores sublimes, e, se elle não se encontra na terra, surge dos tumulos, ó pallida virgem por quem eu anhelo, e mostra-me ao menos n'um relampago as mysteriosas alegrias da eternidade!» N'isto levantei a cabeça, e os meus olhos involuntariamente fixaram-se n'um camarote, que ficava pouco distante do logar que eu occupava na platéa. Uma senhora de belleza maravilhosa estava sósinha n'esse camarote, e encarava-me com uma attenção extraordinaria. Não sei porque gelou-se-me o sangue nas veias, e fiquei extatico a contemplar aquella esplendida formosura. Raras vezes tenho encontrado um rosto assim! A correcção das linhas, a pureza dos contornos, a magestade do perfil deixavam na sombra os mais perfeitos modelos da antiga estatuaria. Praxíteles quebraria desesperado as estatuas e o cinzel, se lhe fosse dado contemplar as inflexões suaves, a perfeição das fórmas d'aquella viva esculptura. Se algum defeito se lhe poderia notar, era a rigidez marmorea da physionomia. Via-se que nem tristezas nem alegrias seriam capazes de alterar a regularidade do semblante, que só parecia ter vida nos olhos, que eram lindos a mais não ser, e d'onde emanavam raios magneticos e deslumbrantes, que enlouqueciam quem se atrevesse a encaral-os. Aquelle rosto assemelhava-se a uma urna de marmore, em cima da qual se tivesse collocado uma lampada de luz fascinadora. Era um fragmento de gêlo dourado levemente pelos reflexos de um vulcão, mas essa physionomia tinha um não sei que de mysterioso e sombrio, que me impressionou profundamente. Olhei para o relogio. Os ponteiros marcavam no mostrador meia-noite em ponto. No theatro os conjurados cantavam o côro das gargalhadas, e repetiam rindo o estribilho: Ah! chè baccano-sul caso strano Andrà dimani per la città! III