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A Pata da Gazella: Romance Brasileiro

9781465671769
213 pages
Library of Alexandria
Overview
Estava parada na rua da Quitanda, proximo a da Assembléa, uma linda victoria, puxada por soberbos cavallos do cabo. Dentro do carro havia duas moças; uma dellas, alta e esbelta, tinha uma presença encantadora; a outra, de pequena estatura, muito delicada de talhe, era talvez mais linda que sua companheira. Estavam ambas elegantemente vestidas, e conversavam a respeito das compras que já tinham realizado ou das que ainda pretendiam fazer. —Daqui aonde vamos? perguntou a mais baixa, vestida de roixo claro. —Ao escriptorio de papai: talvez elle queira vir comnosco. Na volta passaremos pela rua do Ouvidor: respondeu a mais esbelta, cujo talhe era desenhado por um roupão cinzento. O vestido roixo debruçou-se de modo a olhar para fóra, no sentido contrario aquelle em que seguia o carro, emquanto o roupão, recostando-se nas almofadas, consultava uma carteirinha de lembranças, onde naturalmente escrevêra a nota de suas encommendas. —O lacaio ficou-se de uma vez! disse o vestido roixo com um movimento de impaciencia. —É verdade! respondeu distrahidamente a companheira. Estas palavras confirmavam o que aliás indicava o simples aspecto da carruagem: as senhoras estavam á espera do lacaio, mandado a algum ponto proximo. A impaciencia da moça de vestido roixo era partilhada pelos fogosos cavallos, que difficilmente conseguia soffrear um cocheiro agalloado. Depois de alguns momentos de espera, sobresaltou-se o roupão cinzento, e conchegando-se mais ás almofadas, como para occultar-se no fundo da carruagem, murmurou: —Laura!... Laura!... E como sua amiga não a ouvisse, puxou-lhe pela manga. —O que é, Amelia? —Não vês? Aquelle moço que está ali defronte nos olhando. —Que tem isto? disse Laura sorrindo. —Não gósto! replicou Amelia com um movimento de contrariedade. A quanto tempo está ali e sem tirar os olhos de mim? —Volta-lhe as costas! —Vamos para diante. —Como quizeres. Avisado o cocheiro, avançou alguns passos, de modo á tirar ao curioso a vista do interior do carro; mas o mancebo não desanimou por isso, e passando de uma a outra porta, tomou posição conveniente para contemplar a moça com uma admiração franca e apaixonada. Simples no trajo, e pouco favorecido a respeito de belleza; os dotes naturaes que excitavam nesse moço alguma attenção eram uma vasta fronte meditativa, e os grandes olhos, pardos, cheios do brilho profundo e phosphorescente que naquelle momento derramavam pelo semblante de Amelia. Havia minutos que percorrendo a rua da Quitanda em sentido opposto á direcção do carro, avistára a moça recostada nas almofadas, e sentira a seu aspecto viva impressão. Sem disfarce ou acanhamento, recostando-se a ombreira de uma porta de escriptorio, esqueceu-se naquella ardente contemplação. O coração é um solo. Valle onde brotam as paixões, como os outros valles da natureza inanimada, elle tem suas estações, suas quadras de aridez ou de seiva, de estirilidade ou de abundancia. Depois das grandes borrascas e chuvas, os calores do sol, produzem na terra uma fermentação, que fórma o humus; a semente, cahindo ahi, brota com rapidez. Depois das grandes dôres e das lagrimas torrenciaes, fórma-se tambem no coração do homem um humus poderoso, uma exhuberancia de sentimento que precisa de expandir-se. Então um olhar, um sorriso, que ahi penetre, é semente de paixão, e pulula com vigôr extremo. O moço parecia estar nessas condições: elle trajava lucto pesado, não sómente nas roupas negras, como na côr macilenta das faces nuas, e na magoa que lhe escurecia a fronte. Notando Amelia a insistencia do mancebo, ficou vivamente contrariada. Aquelle olhar profundo, que parecia despedir os fogos surdos de uma labareda occulta, incutia nella um desassocego intimo. Agitava-se impaciente, como uma creatura no meio de um somno inquieto ou mesmo de um ligeiro pesadello.