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Os netos de Camillo

9781465569035
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Library of Alexandria
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IDYLLIO RUSTICO A Fialho d'Almeida. Quando atravessou a povoação, rua abaixo, com o rebanho atraz d'elle, era ainda muito cedo. Ao longo das ruas tortuosas, as portas conservavam-se fechadas, e não vinha das habitações o mais insignificante ruido. Dormia-se a somno solto por todas aquellas casas. Apenas algum cão, subitamente acordado em sobresalto pelo chocalhar do rebanho, ladrava do alto dos escadorios de pedra onde ficara de sentinella, ou de dentro das curraladas, onde levara a noite fazendo companhia aos novilhos. D'onde em onde, gallos madrugadores entoavam matinas sonoras, que eram como risadas vibrantes de bohemios, n'alguma esturdia, a deshoras… Mas passadas as ultimas casas, o silencio condensava-se para toda a banda, n'uma grande pacificação de templo adormecido. Nem viv'alma pela ladeira que levava ao rio, por um caminho em zig-zags. Fulgiam no céo azul-escuro cardumes prateados de estrellas. A toda a largura, a paizagem era torva e indecisa, immersa n'uma luz muito mortiça que nem era bem a da madrugada, nem era bem a da noite. No emtanto a manhã era calma; nem rumores de briza pela rama das azinheiras velhas que faziam guarda ao corrego por onde o rebanho tomara. Cigarras, grillos nas hervagens, rãs que coaxavam nas regueiras, era o mais que se ouvia acima do rumor brando dos chocalhos. Nem um balido de ovelha em todo o rebanho que se ia submissamente á mercê do pequeno pastor, parando se elle parava a colher as amoras frescas dos silvados, recomeçando marcha se de novo elle se punha a caminhar. Quando passou rente ao meloal da fidalga, ouviu-se o ruido de um tiro, que o echo levou para longe. ?Não gastes polvora, Antonio!?recommendou o pastor.?Ouviste? E logo a voz do guardador: ?Madrugas hoje, Gonçalo! ?P'ra que saibas: cá um homem não tem medo. ?Está bem. Adeus! ?Saudinha. A esse tempo ia-se já definindo a manhã, na luz, no som, na côr. Invadia a amplidão da cupula celeste uma tinta alvacenta, onde as estrellas feneciam no seu brilho. Ao alto, na ladeira d'além, entravam de fazer-se nitidas as linhas sinuosas das cristas, onde enormes rochedos tinham altitudes de uma immobilidade mysteriosa e sinistra… N'este assomo d'alvorada, as coisas iam despertando lentamente para a alacridade vigorosa da luz. Das moitas e sebes, calhandras era bandos levantavam-se repentinamente, em vôo perpendicular, e cortavam ares fóra, chilreantes e alegres, até se perderem de vista por de traz dos arvoredos e cabeços. De cauda em riste e orelhas immoveis, o rafeiro espreitava as hervagens seccas, onde algum reptil passasse vagaroso. ?Busca, Turco!?fazia-lhe o Gonçalo que tinha medo ás cobras.?Busca, valente! Á medida que descia a ladeira, um marulhar monotono de aguas ouvia-se, mais e mais distincto. Era o rio que parecia perto; mas primeiro que lá se chegasse ainda era preciso andar… Era um poder de passos e de paciencia,?reflectia o pastor, a quem aborreciam de morte os interminaveis torcicollos da vereda. Ia andando, descendo sempre, á frente do rebanho silencioso. E quando os sapatos começaram de calcar areia, e ali, perto, o rio lampejava, sob aquelle céo ainda estrellado, o Gonçalo desabafou: ?Uff! até que emfim!?E pensava aliviado:?Nada mais facil do que terem-me sahido os lobos!… Mas vista áquella hora, e no meio de tal silencio, a corrente liquida tinha o que quer que fosse de sinistro, que evocava lembranças aterradoras, espectros dos que ali mesmo tinham morrido afogados, n'uma lucta desesperada com as aguas, clamando em vão que lhes acudissem, em tamanho transe afflictivo. A margem de lá, especialmente, era toda accidentada de rochedos informes, blocos medonhos, por entre os quaes no inverno o vento assobiava lugubre, e as aguas faziam remoinho, o que era um perigo para os pobres barcos que se aventurassem incautos, n'um descuido involuntario?simples remadela pouco a tempo, manobra menos segura de leme, ou impulso errado de vara. E então, cabeços enormes d'um lado e d'outro, projectando sobre o largo leito do rio a sua sombra pesada e desconforme, que mais triste fazia o sitio e parece que mais solitario, pois fechavam-no bruscamente, fazendo limitada a paizagem. A todo o comprimento da margem, o rebanho pôz-se então a beber manso e manso, e sem o minimo ruido. Foi quando o Gonçalo acabou de se convencer que na margem de lá, um pouco mais abaixo, outro rebanho bebia tambem. ?Táte, Gonçalo! Aquella chocalhada… E immovel, remordendo o labio, com o ouvido á escuta, pensava: ?Ora se será ella?… Subito, estremeceu. Ante o seu espirito infantil perpassou, como um clarão de relampago, a imagem de uma rapariga, pastora como elle, com quem se havia encontrado mais vezes, mas que havia muito não vira. ?Ai, se fosse a Rosaria!… dizia comsigo. E impondo silencio ao rebanho, que acabara de beber, pôz-se attentamente á escuta do tilintar dos chocalhos na margem opposta. «O rebanho parecia o mesmo, lá isso… Agora o pastor é que podia ser outro que não a Rosaria… » Senão quando, uma ideia lhe acudiu que o fez sorrir de contente. Atirou ao chão a manta e o marmeleiro, e puxando para deante o bornal, feito da pelle de uma ovelha branca, morta pelas segadas, tirou de lá a sua flauta e pôz-se a tocar apressadamente um trecho de cantiga rustica. No mesmo instante, uma voz muito sonora gritou-lhe: ?Ehlà, Gonçalo, és? O pastor desatou a rir. ?Uhlá, Rosaria, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona! E logo a voz fresca da rapariga lembrou: ?Não te esqueceu a moda, rapaz! ?Isso esquece ella!… Ouviste, Rosaria??Se outra fosse que m'a tivesse ensinado… N'este meio tempo já o Gonçalo retomara a manta e o marmeleiro para ir ter com a Rosaria. Mas primeiro perguntou: ?Boto pela ponte, ou és tu que vens, ó cachopa? ?Vem tu d'ahi. Por cá sempre é outra coisa p'r'as ovelhas. Han? ?Basta! E dando o signal da partida, o Gonçalo pôz-se em marcha. D'ahi a pouco, entrava mais o rebanho pela velha ponte moirisca, toda severa de construcção nos seus tres arcos lançados sem elegancia, atufados de parasitas seculares que a faziam pittoresca, heras, silvas, ortigas bravas. A meio da ponte, mão piedosa fizera construir pequeno oratorio ao Senhor Salvador, cujo rosto sereno, espreitando por grades de arame, diziam dar coragem a barqueiros e almocreves, que ante o pequeno e humilde nicho com respeito se descobrissem, e com devoção rezassem uma velha prece que era como um talisman precioso para livrar de maiores desgraças?naufragios no rio, e então maus encontros por aquelles caminhos escabrosos, que eram um perigo constante para homens e animaes. D'ahi a pouco, as duas creanças estavam perto uma da outra, cada qual seguida do seu rebanho. ?Ora viva a Rosaria!?disse o pastor muito alegre, parando defronte da cachopa. ?Bons dias, Gonçalo; então que ventos? Entre os dois travou-se então um longo dialogo em que se contaram tudo o que haviam feito desde aquelle dia em que ambos tinham voltado juntos da feira dos Caniços. ?Por signal que nem rez se vendeu!?lembrou o Gonçalo. ?Por signal!?disse com pena a Rosaria. Mas elle contou que viera por ali muitas vezes, muitas, sempre na fé que a encontrava. «Vêl-a agora, só por milagre de santo; quem o havia de sonhar! Nanja elle… » ?Mas se eu estive tão doente!?volveu triste a Rosaria. E como o outro acudiu a informar-se, ella explicou: ?Umas quartãs que me tiveram mondada! A peste as mate! Febre que era mesmo lume desde manhã até ao escurecer… Uma assim! E na sua ingenuidade infantil, contou ao Gonçalo que muitas vezes, na febre, sonhara com elle, que se encontravam os dois por montes e prados, como agora tinha acontecido, «tal e qual». ?Assim te Deus salve, ó Rosaria??atalhou rapido o pastor, a quem enchiam de orgulho os sonhos d'aquella pequena amiga. ?Assim; pois que duvida??tornou-lhe confiada a Rosaria. ?Não!?disse agastado o Gonçalo.?Não has-de dizer assim… Diz certo, has-de jurar direito. ?Pois assim me Deus salve… ?Como é verdade… ?Diz tudo, Rosaria!?supplicava o pastor. ?Sim, volveu-lhe paciente a companheira,?como é verdade que sonhava que nos encontravamos?concluiu por fim, muito risonha. E sem disfarçar o jubilo, prestes o Gonçalo a certificou de que tambem não a esquecera. «Tanto é que tirava da frauta as cantigas todas que ella lhe tinha ensinado.» ?Lembras-te? A Rosaria faz que sim com a cabeça. E logo, batendo na frauta de sabugueiro, o pastor apressou-se a declarar: ?Sahem d'aqui sem falhar uma.?E resoluto:?Vá feito, Rosaria, pede por bocca! A Rosaria pediu então a Pastorinha. ?Eu é da que mais gosto,?explicou.?É a mais linda. ?E é!?concordou o Gonçalo.?Ora escuta lá. E levando aos labios a avena, pôz-se a tocar a Pastorinha, emquanto a Rosaria, com a sua vozita em surdina, entrava a tempo com a lettra: Onde vás, ó Pastorinha, Ai-li, ai-li, ai-li, ai-lé… ?Sabes essa! É mesmo assim!?disse-lhe a Rosaria a rir-se. ?É como vês!?affirmou contente o Gonçalo. Aos seus pés tinham-se deitado os rafeiros, e já os dois rebanhos, confundidos, andavam na pastagem. ?Olha as ovelhas juntas!?notou o Gonçalo. ?Tambem nós nos quedámos juntos,?volveu-lhe a pequena, sorrindo.?As pobres dão-se bem, são amigas… ?continuou com jubilo. ?E nós tambem, ora tambem, Rosaria? ?Tambem?respondeu afoita a pastora. E foram-se ter conta no rebanho, que choviam as coimas e as denuncias