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Oliveira Martins:Estudo de Psychologia

Estudo de Psychologia

9781465568885
pages
Library of Alexandria
Overview
Comecemos pelos defeitos, e pelos pontos em{19} que discordo (sem pretender por modo algum incluir estas divergencias no numero dos defeitos) da maneira de vêr do autor. Depois, mais desassombrados, apreciaremos o pensamento essencial da obra. Os defeitos são, me parece, exclusivamente de fórma e composição. Ha uma idéa fundamental no livro, que determina uma linha logica, desenvolvendo-se sem soluções de continuidade da primeira até á ultima pagina; ha, nos pontos que essa linha percorre, uma successão natural correspondente ao encadeamento normal dos principios e dos factos na sciencia e na historia. O que falta, porém, é uma definição cathegorica da idéa geradora, e uma exposição precisa e desenvolvida dos principios, de tal sorte que estes não se entrevejam sómente, mas appareçam de facto como a razão sufficiente dos phenomenos historicos e a elles adequados. É a esta falta que se deve attribuir a difficuldade e obscuridade que encontram as intelligencias não preparadas por uma conveniente educação philosophica (e são muitas, desgraçadamente) em certas partes desta obra, aliás methodica e bem deduzida. Quero com isto dizer que não é da idéa que provém a obscuridade, mas da composição e do estilo. Bastava que o autor tivesse dado ás theses, que precedem cada um dos seus capitulos, um desenvolvimento proporcional, em vez de as encerrar em formulas, ás vezes um tanto algebricas, e que nas suas exposições de principios arejasse um pouco o estilo, tornando-o mais ductil e menos technico, para que as abstrações philosophicas se{20} tornassem accessiveis ao simples senso-commum, a que se reduz o criterio de 90 por cento dos leitores portuguezes. Faço estes reparos, não só para que as pessoas que não comprehenderam bem certas paginas do livro do sr. Martins se convençam de que essa obscuridade nada depõe contra a verdade e lucidez da idéa fundamental delle, como tambem por entender que o estilo nas obras não litterarias, e até nas de sciencia pura, não deve ser considerado como coisa accessoria e secundaria. Certamente que não aconselho aos homens de sciencia que façam estilo; mas é que tal conselho não o daria tambem aos literatos e aos poetas. Para mim, entre ter bom estilo e fazer estilo ha uma differença essencial: ter bom estilo significa ter o estilo proprio e conveniente das idéas que se expõem; fazer estilo significa encobrir a falta de idéas com phrases redundantes e apparatosas, com aquelles persicos apparatus que já Horacio queria banidos dos festins e, com maior razão ainda, do discurso. Póde haver, e ha effectivamente, bom estilo até nas sciencias mais rigorosas, naquellas a que os espiritos vasios, que querem campar de poeticos, chamam aridas: ha bom estilo em mathematica, por exemplo, e em chimica: Lagrange passa por ter escripto algebra com uma elegancia e belleza verdadeiramente classicas; em chimica, gosa hoje de igual reputação o illustre Wurtz. Mas deixemos isto, porque não é sobre esthetica que me propuz escrever. Direi sómente que o sr. O. Martins nunca faz estilo, exactamente porque tem muitas idéas;{21} mas que, por não dispôr ás vezes convenientemente as suas idéas, consoante os respectivos valores, cum pondere, numero et mensura, deixa passar certas paginas, que, sem injustiça, podemos acoimar por não terem bom estilo. Tomarei tambem nota de alguns pontos em que não concordo com o modo de vêr do autor da Theoria. Não é que essas divergencias de opinião sejam muito profundas, quero dizer, que versem sobre pontos essenciaes da doutrina do livro: são, pelo contrario, exotericas, e versam exclusivamente sobre certas apreciações historicas, indifferentes em grande parte á conclusão geral que o autor tira da evolução das sociedades na Europa desde a época romana. Essa conclusão é a minha tambem, como o leitor verá: e se tomo nota destas divergencias, é porque não me apraz estar completamente de accordo com quem quer que seja, maximamente com aquelles cuja intelligencia préso e respeito—e desejo deixal-o registado. Custar-me-hia tanto não concordar em ponto algum com o sr. O. Martins, como concordar em todos absolutamente. Espero que o leitor comprehenderá, sem mais explicações, o que quero dizer. Discordo pois, da maneira porque o sr. Martins encara, na sua generalidade, a Idade-media, considerando-a como um periodo de retrocesso em relação á civilisação greco-romana, durante o qual os elementos evolutivos dessa civilisação estacionassem (experimentando alguma coisa analoga áquillo a que em physiologia se chama interrupção de desenvolvimento), em virtude das sabidas causas ethnologicas, sociaes e moraes que{22} determinaram a dissolução do mundo antigo, de tal sorte que todo o movimento europeu, durante aquelles nove a dez seculos, se reduzisse, de um lado, á tradicção greco-romana, no que ella tinha de já definitivo e não evolutivo, isto é, o Cristianismo e o Imperio, e do outro lado, ao reapparecimento de elementos primitivos, os Barbaros, que apenas repetem extemporaneamente phases sociaes, que a civilisação antiga, havia já seculos, tinha atravessado. Daqui parece o autor concluir que a evolução normal da civilisação foi perturbada, durante um certo periodo, pela introducção violenta de elementos estranhos, constituindo uma como massa indigesta, cuja laboriosa digestão produzindo uma lethargia secular, explica sufficientemente a interrupção de desenvolvimento que descobre na idade-media. Esses elementos anormaes, que a civilisação teve de digerir durante mil annos, para poder reatar os termos logicos da sua evolução (seculo 5.º, seculo 16.º), foram, de um lado, o Cristianismo com o seu Santo Imperio, do outro lado os Barbaros com o seu sistema feudal. Ora, de mais de uma pagina da Theoria concluo eu que, no pensar do sr. Martins, nenhum destes dois phenomenos é inherente á evolução, pois que vê nas invasões barbaras só um phenomeno ethnologico e como que uma fatalidade natural, e no Christianismo uma mera reacção religiosa, um recrudescimento anomalo de transcendentalismo, quando já pelo Estoicismo, de um lado, e do outro pelo Epicurismo, entrava o espirito humano na larga estrada da philosophia natural, e entrevia no horisonte a luz salvadora da Immanencia. A conclusão{23} a tirar é que, sem estes elementos perturbadores, não teria havido interrupção de desenvolvimento, seriam poupadas á Humanidade as agonias da sua paixão (como Michelet chama á Idade-media), o seculo 16.º teria caído no seculo 6.º, e nós hoje estariamos já aonde só estaremos no seculo 30.º